Dia 23 de outubro de 2025, 9h30min, sala de sessões da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, Anexo II-B, 3º andar, sede do STF: eis o dia, a hora e o local marcados para que a política brasileira encontre o caminho de volta à razoabilidade.
Num despacho burocrático nos autos da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 854 publicado no fim da noite no site do Supremo o ministro Flávio Dino marcou para aquela data e momento Audiência de Contextualização sobre o Orçamento Secreto, as emendas pix e as emendas impositivas.
Foram intimados a comparecer o partido autor da ADPF 854, o PSOL, a Procuradoria Geral da República, a Advocacia Geral da União e as advocacias-gerais do Senado Federal e da Câmara dos Deputados.
Os presidentes do Tribunal de Contas da União, do Banco do Brasil, da Caixa Econômica Federal e do Banco do Nordeste e o ministro-chefe da Corregedoria Geral da União foram convidados pessoalmente a comparecerem à sessão – dando uma noção exata da relevância que Dino dá à sessão destinada a instruir o processo capital para a manutenção do funcionamento independente e harmônico dos Três Poderes.
O ministro Flávio Dino ainda escreveu em seu despacho que admite a participação de outros partidos e instituições de Estado como “amici curiae” (ou seja, “amigos da Corte”) caso desejem indicar um representante e faculta-lhes a possibilidade de se manifestarem nos autos até dez dias depois da Audiência de Contextualização por meio de relatórios técnicos.
O formato e a amplitude da sessão de 23 de outubro convocada pelo agora presidente da Primeira Turma do STF é técnico, solene e traz uma excelente inovação na discussão jurídica de um tema tão caro à política. Agindo assim, perfeitamente enquadrado dentro da toga de magistrado, Dino está se afastando de bate-bocas estéreis entre os poderes da República e confere seriedade e distanciamento jurídico para a sentença que proferirá sobe a gestão orçamentária brasileira.
Em março de 2015, apenas um mês depois de assumir a presidência da Câmara dos Deputados, quando conseguiu aprovar uma proposta de emenda constitucional que instituiu as emendas impositivas, o ex-deputado Eduardo Cunha começou a mudar todo o mecanismo de funcionamento da política brasileira e a desmantelar o Estado.
A ambição de Cunha era dar poderes aos congressistas para que governassem – e isso é ilegítimo porque a atribuição de ser Governo, de administrar o Orçamento da União estabelecendo as prioridades de gestão que foram estabelecidas por meio dos programas eleitos nas urnas, é de quem se elegeu para o Poder Executivo. É assim que a Constituição estabelece, foi assim que se construíram os pactos de governabilidade da Inglaterra desde o Século XIII, dos Estados Unidos e da França desde o Século XVIII e do Brasil depois de 1889.
Afastado do cargo em 2016, cassado e preso por ser acusado de se beneficiar de desvios orçamentários da Petrobras, logo depois de conseguido liderar o Congresso na execução quase sumária do impeachment sem crime de responsabilidade (que é golpe) que levou à deposição de Dilma Rousseff, Eduardo Cunha não conseguiu implementar a 2ª fase de seu projeto de agigantar os poderes do Parlamento contra os poderes do Executivo e governar como uma verdadeiro primeiro-ministro num sistema “semipresidencialista”.
Coube ao sucessor de Cunha, Rodrigo Maia, criar as bases do Orçamento Secreto ao instituir a emenda de relator (do relator do Orçamento), conferir a ela poderes de impositividade e fazer com que todos os deputados e senadores que não quisessem aparecer como concedentes de verbas orçamentárias para projetos suspeitos ou empresas investigadas, fossem protegidos por aquelas “emendas de relator”. Os órgãos de fiscalização – CGU, Corregedoria Geral da União, e TCU, Tribunal de Contas da União – passaram a ter o trabalho dificultado pela baixíssima transparência daquelas emendas de relator. E os relatores-gerais do Orçamento da União passaram a ficar protegidos da acusação de desvios porque podiam alegar (como o fazem desde então) serem meros indicadores ordinários e legais das determinações dos colegas deputados e senadores.
A OPACIDADE DA EMENDA PIX
Em 2019, em plena vigência da Era Trágica da República brasileira, sob o governo Jair Bolsonaro, as emendas orçamentárias ficaram ainda mais opacas com o advento das chamadas “emendas pix”. Por meio delas, deputados e senadores enviam recursos orçamentários direto para os caixas de municípios ou de governos estaduais sem a necessidade de haver projeto proposto, projeto-executivo de obras ou mesmo rubrica orçamentária específica determinando onde aqueles recursos serão gastos.
As emendas pix ampliaram em grande medida os desvios com recursos do Tesouro da União e decuplicaram o poder político dos parlamentares em suas bases políticas tradicionais. Isso promoveu uma desigualdade e uma assimetria jamais vistas nas disputas eleitorais – o que contribui para a baixíssima rotatividade das bancadas no Congresso e desestimula a necessária renovação política.
Fruto de outra proposta de emenda constitucional (a EC 105/19) de autoria original da então senadora Gleisi Hoffmann, hoje ministra da Secretaria de Relações Institucionais da Presidência e que naquele momento (em 2019) era presidente nacional do Partido dos Trabalhadores e uma das vozes mais fortes da oposição ao bolsonarismo, a emenda pix desmantelou a estrutura de distribuição harmônica do poder em Brasília.
Houve um desvirtuamento das emendas pix, pensadas para serem ferramenta de resistência nos duros tempos do bolsonarismo, quando a oposição no Congresso não tinha nem voz, nem vez, sob a condução combinada da pauta de votações e de liberações orçamentárias por Arthur Lira e Ciro Nogueira.
Porém com a restauração democrática pós-2022, governos eleitos a partir de programas têm suas prioridades minimamente definidas no curso de campanhas. Isso vale para o atual e para os futuros. O Executivo precisa restaurar o legítimo poder de persuasão no Congresso a partir das causas e das linhas administrativas que prioriza, uma vez que elas foram decididas na urna, pelo eleitor.
As emendas pix transformaram os gabinetes deputados e senadores em células de gestão orçamentária. Elas são de difícil rastreabilidade por parte da CGU e do TCU, órgãos de fiscalização e controle definidos constitucionalmente. Os caixas municipais e estaduais fazem a origem do recurso se diluir quando o recebem via emenda pix e verbas discricionárias (que não têm “carimbo”, como aquelas destinadas obrigatoriamente à saúde, à educação, por exemplo) misturam-se com verbas não discricionárias.
Processos licitatórios suspeitos terminam por conferir verniz de legalidade a certames totalmente opacos. Além disso, em ao menos 20 estados brasileiros o instituto da emenda pix se reproduziu, replicando as possibilidades de desvios e de atos de corrupção na maior parte do território nacional.
É pela relevância dessas advertências gritadas a partir de Brasília e de dentro dos becos e vielas do Orçamento Geral da União que a Audiência de Contextualização convocada pelo ministro Flávio Dino para o dia 23 de outubro próximo, às 9h30min, no plenário da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (o mesmo salão onde se proferiu a sentença histórica contra o núcleo crucial golpista de 8 de janeiro de 2023) será um novo marco para a nossa democracia: dia, hora e local para que se reinaugure as pontes institucionais que conectam os Três Poderes e os permite funcionar de forma harmônica, além de assegurar eleições simétricas e com paridade de armas entre aqueles que irão disputar mandatos na Câmara, no Senado e nas assembleias estaduais.