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O dia em que Michael Jackson foi barrado no Brasil

por Xico Sa
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Existem as tretas sérias e chatas, como tarifaço de Donald Trump contra o Brasil, com a ajuda dos traíras da extrema brasileira. A história registra também as confusões gravíssimas, como o apoio dos EUA ao golpe de 1964, por exemplo.

No campo cultural, porém, há a aproximação política inusitada com o personagem Zé Carioca — desenhado por Walt Disney — e as farras cinematográficas de Orson Welles no Rio de Janeiro dos anos 1940. O homem do “Cidadão Kane” caiu na mais absoluta gandaia.

Nada foi tão bizarro, porém, como um episódio que ajudei a contar na imprensa, em 1996. Quase vira um conflito diplomático.

Para subir o morro e gravar um clipe no Brasil, Michael Jackson teve que driblar até o Pelé. Foi uma saga surreal. O primeiro obstáculo foi o governo do Estado do Rio, que tentou impedir na Justiça que o ídolo pop rebolasse na terra do samba.

Depois vieram polícia, traficantes, a turma da propina e uma burocracia dos infernos, incluindo uma guerrilha de liminares na Justiça. Ainda bem que o diretor Spike Lee, como dublê de um brasileiro que não desiste nunca, resolveu encarar os adversários e fez uma pequena obra-prima com a música “They Don’t Care About Us”.

Sempre de estilo refinado em campo, o rei do futebol parecia um zagueiro tosco na tentativa de impedir o clipe. Falava como Edson Arantes do Nascimento, autoridade de Brasília, então ministro dos Esportes:

“Por que o Michael não vem aqui e filma as praias, que são maravilhosas, o Pão de Açúcar? Por que não filma as praias da Bahia ou vai à Amazônia e mostra suas riquezas? No meu entender, deve haver muito cuidado com isso”, implicou. “Daqui para frente temos que nos unir para mudar essa cara do Brasil ruim. Chegou o momento de mostrarmos as coisas boas do Brasil. Não temos que nos sujeitar a mostrar somente as coisas ruins”.

Pelé reforçava o coro dos cariocas descontentes. O secretário de Indústria, Comércio e Turismo do Rio, Ronaldo Cezar Coelho, promoveu uma campanha “patriótica” contra a trupe de Michael Jackson. Para o representante do governo estadual, exibir as favelas brasileiras pelo mundo seria um desserviço ao país, o que acabaria prejudicando a nossa economia etc etc. Haja blablablá nos microfones do rádio e dos telejornais.

A campanha de Coelho era tão radical que chegou a pedir para que o Ministério das Relações Exteriores não concedesse vistos de trabalho no Brasil à equipe comandada por Spike Lee. A gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso, no entanto, em momento algum cogitou atender aos clamores nada diplomáticos do governo do Rio.

Em nota, a secretaria de imprensa do Itamaraty abriu as portas para Michael Jackson e sua trupe: “Não está em cogitação negar qualquer pedido de visto ao cantor. Se ele vier ao Brasil, não terá sua entrada negada. Não se pode tentar esconder uma realidade que existe no País.”

Apenas de passagem no Brasil, Spike Lee conseguiu decifrar o esperneio do ex-banqueiro e secretário estadual: “Ele quer ser prefeito, não quer? Conseguiu o que queria: espaço na TV e nos jornais”.

O diretor de “Faça a coisa certa” (Do the Right Thing) teve que enfrentar também o chefe da Polícia Civil, Hélio Luz. “Spike Lee pagou porque é otário. Deve estar acostumado a fazer isso lá nos Estados Unidos e fez aqui também”, disse, ao acusar o cineasta de pagar uma taxa a Marcinho VP, considerado o chefe do tráfico no morro de Santa Marta, cenário da gravação do clipe.

Ao final da treta bizarra, o diretor ainda era cobrado a dar explicações. “A polícia tem muito pouca autoridade lá. Acho isso normal, mesmo em Nova York temos que pagar para gravar em determinados lugares”, disse Spike Lee.

Depois da confusão carioca, a trupe seguiu para Salvador, Bahia. Você há de lembrar do dia em que Michael Jackson chorou diante dos tambores do Olodum.

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