ouça este conteúdo
00:00 / 00:00
1x
Peço licença às leitoras e leitores e chego nesse espaço seguindo a lição que Dona Ivone Lara e Délcio Carvalho ensinam em um samba de roda: o negócio é pisar nesse chão devagarinho. Sempre fui obediente, mas não pude resistir: a despeito dos anos de dureza que o mundo vêm enfrentando, insisto em abordar no meu trabalho o papel das festas na formação do Brasil. Vou mais longe. Destacar o papel das festas, diante do horror, me parece ainda mais relevante.
Em 1987, Lélia Gonzales publicou o livro Festas populares no Brasil. A obra foi a única que a pensadora fundamental, militante do movimento negro e acadêmica em constante diálogo com as ruas, lançou em vida exclusivamente como autora. O trabalho precioso, cheio de fotos de pesos pesados como Januário Garcia e Walter Firmo, foi reeditado em 2024 pela Boitempo e mostra como africanos escravizados e seus descendentes reinventaram o calendário euro-cristão de festividades e reconstruíram, a partir das celebrações coletivas, sentidos de mundo que a escravidão tentou destruir.
É importante que um estudo sobre festas de uma intelectual da importância de Lélia Gonzales seja cada vez mais difundido no Brasil. Falar de festas populares não é besteira e muito menos alienação. As festas brasileiras são celebrações coletivas que, ao longo da nossa história, afrontam a escassez, o individualismo e a decadência da vida em grupo. Podemos entendê-las como conjuntos de rituais de reavivamento de laços contrários à diluição comunitária que desafiam, entre corpos que bailam e tambores que retumbam, um estado-nação projetado para excluir, disciplinar ou aniquilar a maior parte de seus habitantes.
Em tempos cada vez mais marcados pelo esgarçamento do viver em comunidade, as festas populares são instâncias possíveis de reconstrução do ser a partir do pertencimento ao comum. Foi desta forma que, ao longo da história, o povo brasileiro driblou o horror e costurou fantasias com agulhas e linhas capazes de bordar o direito que cada um tem de estar plenamente nas ruas e no mundo.
Seriam as festas populares, portanto, manifestações de resistência? Eu diria que sim, mas é insuficiente. Neste ponto sou obrigado a colocar pimenta no vatapá e sugerir que a ideia de resistência não esgota os sentidos que as festas têm. As culturas de festas, mais que de resistência, são de invenção.
Resistência, por definição, é a capacidade que uma força tem de se opor a outra; um conjunto de atos de defesa contra determinadas ações. Acontece que festejar não é apenas resistir (opor-se ao outro), mas sobretudo inventar a vida e organizar o mundo em dimensões materiais, afetivas, espirituais, que o oponente muitas vezes não alcança. Isso ocorre também a partir de complexidades, contradições e estratégias que oscilam entre o enfrentamento e a negociação e, vez por outra, andam no fio da navalha entre a cooptação por instâncias do poder e do mercado e a negação desses agentes.
É pela premissa sugerida acima que prefiro definir as festas populares como culturas de invenção; aquelas que resistem, mas vão além da resistência e não se limitam a reagir: elas inventam mundos e celebram a vida onde, aparentemente, só a morte deveria campear.
Dito isso, abro os trabalhos por aqui com o intuito de chamar atenção para as maneiras como, nas rachaduras de um muro de horror, foram e ainda são (ainda que seriamente ameaçadas) construídas alternativas festeiras capazes de garrinchar a previsibilidade do jogo e recriar o mundo. Teremos, portanto, muito assunto pela frente.