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Adultos antes da hora: do caso Felca ao marco histórico da regulação digital

por Amanda Prado
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Por Mayara Stelle*

A denúncia feita pelo influenciador Felca sobre a chamada “adultização” de crianças nas redes sociais foi um dos acontecimentos mais importantes do debate público brasileiro em 2025. O vídeo que ele publicou, expondo práticas de exploração e sexualização precoce de menores em ambientes digitais, alcançou dezenas de milhões de pessoas em poucos dias e trouxe à tona uma realidade incômoda, mas inescapável: a infância, em sua dimensão mais vulnerável, está sendo explorada por uma lógica predatória de plataformas digitais que operam sem qualquer limite regulatório à altura do problema.

A reação à denúncia foi imediata. Em questão de dias, investigações foram abertas, conteúdos derrubados, influenciadores denunciados e até prisões realizadas. O mais significativo, porém, foi a mobilização social em torno de um consenso raro em um país marcado por polarizações políticas profundas: a infância precisa ser protegida com urgência diante da lógica mercantil que rege o ambiente digital. O caso evidenciou que não se trata de episódios isolados ou desvios ocasionais, mas sim de um padrão estrutural produzido e amplificado pelos algoritmos de recomendação, pelo modelo de negócios baseado em atenção e pelo incentivo permanente ao engajamento a qualquer custo.

Essa mobilização encontrou eco no Legislativo e produziu um desfecho histórico. O Projeto de Lei 2.628/2022, conhecido como “ECA Digital”, foi aprovado no Congresso Nacional em agosto de 2025, após tramitar por anos entre o Senado e a Câmara. O texto atualiza as bases do Estatuto da Criança e do Adolescente e da Lei Geral de Proteção de Dados para o contexto digital, criando mecanismos eficazes para proteger crianças e adolescentes em plataformas online. Entre as medidas estão a implementação de sistemas de verificação de idade mais robustos, a exigência de ferramentas de supervisão parental acessíveis e intuitivas, a proibição de publicidade direcionada ao público infantil e, sobretudo, a responsabilização das plataformas por conteúdos ilegais e nocivos, com multas pesadas e possibilidade de suspensão de serviços.

A aprovação do PL 2628 representa um divisor de águas. Pela primeira vez, o Brasil estabelece um marco regulatório capaz de enfrentar de maneira consistente os riscos digitais para menores. O debate que se abriu no Brasil ecoa uma discussão internacional mais ampla. Países que enfrentaram escândalos semelhantes nos últimos anos já avançaram em legislações específicas. No Reino Unido, o Age-Appropriate Design Code, conhecido como Código das Crianças, obriga plataformas a configurarem seus serviços de forma a priorizar a privacidade e o bem-estar de usuários menores de idade, impondo limites ao rastreamento de dados e ao direcionamento de conteúdos. A União Europeia,


com o Digital Services Act, estabeleceu parâmetros de responsabilidade mais claros para empresas digitais, exigindo relatórios de risco, mecanismos de auditoria e sanções significativas em caso de descumprimento. Na Austrália, a eSafety Commissioner atua como uma autoridade independente dedicada à proteção online, com poderes para remover conteúdos nocivos e intervir rapidamente em casos de abuso.

Nos Estados Unidos, embora não exista uma lei federal tão abrangente quanto a europeia, iniciativas estaduais e processos judiciais contra big techs vêm impondo restrições cada vez maiores, sobretudo após a revelação de documentos internos do Facebook — os chamados Facebook Papers — que mostraram que a própria empresa tinha conhecimento dos efeitos nocivos do Instagram sobre adolescentes, especialmente meninas. Esses documentos revelaram que a lógica algorítmica não é neutra: ela amplifica conteúdos que geram engajamento, mesmo que isso signifique agravar transtornos alimentares ou estimular comparações nocivas. A ausência de intervenção regulatória transforma as


redes em experimentos de larga escala, nos quais crianças são cobaias involuntárias. Esses exemplos demonstram que o Brasil não está isolado, mas sim inserido em um movimento global de reação ao poder excessivo e à falta de responsabilidade das big techs.

A lacuna que o episódio Felca revelou no Brasil é evidente. Até aqui, não havia um marco regulatório capaz de responsabilizar plataformas digitais de maneira consistente pela proteção de menores. O que existia eram respostas pontuais, baseadas em termos de uso internos, que colocam sobre famílias e usuários individuais uma responsabilidade que deveria ser coletiva e regulada pelo Estado. Essa lógica transfere a culpa para pais e mães, como se fosse possível acompanhar 24 horas por dia a vida digital de uma criança exposta a algoritmos projetados para maximizar tempo de tela e captar ao máximo a atenção. Não se trata de negar a importância da educação digital no ambiente familiar, mas de reconhecer que há limites para a ação individual quando se enfrenta um modelo de negócios multibilionário, estruturado justamente sobre a exploração da vulnerabilidade.

O Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) alerta que o Brasil está entre os países com maior incidência de cyberbullying e exposição de menores a riscos digitais na América Latina. Isso significa que estamos diante de uma geração inteira que cresce imersa em um ambiente onde os riscos superam as garantias. Os efeitos dessa exposição são múltiplos e vão muito além da esfera digital. Pesquisas da American Psychological Association apontam que a exposição precoce a conteúdos de natureza sexual ou violenta impacta diretamente no desenvolvimento emocional, contribuindo para quadros de ansiedade, depressão, distorções de autoimagem e até comportamentos de risco. Em termos de impacto social, a naturalização da sexualização de crianças em ambientes digitais reforça desigualdades de gênero, alimenta a cultura de exploração e perpetua ciclos de violência.

Apesar de tudo, o Brasil sempre caminhou de forma lenta nessa pauta, muitas vezes refém de lobbies corporativos e da falsa ideia de que regular a internet seria um ataque à liberdade de expressão. No entanto, o caso Felca mudou esse paradigma. A sociedade percebeu, de maneira direta, que o que está em jogo não é censura, mas a proteção de direitos fundamentais. Ninguém em sã consciência poderia defender que a exploração sexualizada de crianças seja tolerada em nome de uma liberdade mal interpretada. Pelo contrário, é justamente a ausência de regras claras que cria um ambiente propício para abusos.

A aprovação do ECA Digital não encerra o problema, mas marca um ponto de virada. Agora, o desafio é garantir sua implementação rigorosa, evitar que ele se torne letra morta e assegurar que empresas digitais não consigam driblar suas obrigações por meio de lobby ou judicialização. Será preciso fortalecer órgãos de fiscalização, investir em campanhas educativas e garantir que famílias e escolas recebam apoio para enfrentar os riscos digitais de forma coletiva. A denúncia de Felca foi um estopim, mas não pode ser vista como ponto de chegada. Ela revelou o óbvio que insistíamos em ignorar: crianças e adolescentes estão sozinhos em uma arena digital desenhada para explorá-los.

* Mayara Stelle é jurista, cofundadora e diretora executiva do Sleeping Giants Brasil

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