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Por Cleber Lourenço
No julgamento da tentativa de golpe de Estado, o ministro Luiz Fux afastou a majorante que qualificaria como armada a organização criminosa formada para sustentar os atos golpistas. Para ele, não bastam referências genéricas à presença de CACs ou de militares que possuam armas registradas: é preciso prova concreta de que ao menos um integrante tenha efetivamente utilizado arma de fogo em benefício da organização, e que os demais membros tivessem ciência desse uso como parte estrutural da atuação do grupo.
Fux destacou que a aplicação do §2º do artigo 2º da Lei 12.850 não exige a apreensão da arma em flagrante, mas sim demonstração do “efetivo emprego” dela pela organização. Essa leitura, aparentemente mais próxima de uma interpretação garantista, levou o ministro a afastar a majorante no caso concreto, por ausência de elementos que comprovassem o uso de armas de fogo pelos acusados.
A decisão, porém, gerou forte reação de criminalistas. O advogado Davi Tangerino chamou atenção para a inconsistência do raciocínio: “Ele afasta a majorante em OrCrim armada quando o sujeito não estiver portando a arma no momento do crime. Então, se alguém for preso, em operação policial, por ser integrante de facção, e estiver momentaneamente desarmado, então a organização deixou de ser armada?”. O comentário expõe o risco de que o precedente seja lido como um afrouxamento das regras em casos de crimes associativos.
O que dizem os advogados
Advogado criminalista Davi Tangerino (Foto: Reprodução)
Em entrevista, Tangerino reforçou a crítica com ironia: “O PCC e o CV devem estar felicíssimos, afinal, segundo Fux, agora, se prender um sujeito por integrar organização criminosa e ele não estiver portando uma arma ali com ele, já se pode alegar: ‘Opa! quero invocar aqui o precedente FUX, eu não tô com a arma aqui, então eu não posso ser integrante de OrCrim armada…’”. Segundo ele, dificilmente a tese seria aplicada em julgamentos contra facções notoriamente violentas e estruturadas.
Na sequência, Tangerino ponderou que a posição revela um garantismo seletivo: “Sou sempre simpático a interpretações garantistas, mas essa leitura me parece casuística. Será que ele estenderia isso ao PCC ou ao CV? Acho que não”. Para ele, o padrão probatório elevado serve aos acusados da ação penal 2668, mas dificilmente seria usado para beneficiar réus em processos de facções criminosas.
Advogado criminalista Joel Luiz (Foto: Reprodução)
O criminalista Joel Luiz também questionou a validade prática do entendimento: “Acho que o professor Tangerino tá certíssimo. Em tese o Ministro Fux abre o precedente Fux. Mas é bom falar em tese, pois, além de ser um exemplo distante da realidade, não temos nenhuma segurança jurídica a ponto de que uma posição tão ‘benéfica aos acusados’ como essa possa ser repetida por juízes de outras instâncias, tampouco pelo próprio Fux. E afirmo isso pois, em regra, não temos julgadores tão complacentes com os acusados como o Ministro Fux foi com os acusados da ação penal 2668, haja vista que nosso país tem a terceira maior população carcerária do mundo”.
A declaração de Joel Luiz amplia o debate ao destacar o problema da seletividade penal. Para ele, a decisão de Fux mostra como o Supremo pode aplicar um raciocínio mais protetivo quando se trata de atores políticos ou militares, mas não estende essa compreensão a réus pobres, negros e moradores das periferias, que constituem a maioria do sistema prisional brasileiro. Nesse sentido, o voto é visto como exemplo de “garantismo de ocasião”, aplicado em um contexto específico, mas improvável de se tornar referência estável para outros julgamentos.
Na prática, a exigência de prova individualizada do uso de armas pode esvaziar a eficácia da majorante em crimes associativos, já que nem todos os integrantes de facções são flagrados portando armamento. A jurisprudência do STF e do STJ até aqui vinha admitindo que a OrCrim armada se caracterizava pela comprovação de que armas eram usadas de forma estrutural pelo grupo, independentemente da apreensão em mãos de cada acusado. Ao se distanciar desse entendimento, Fux abre um precedente que, na visão de especialistas, serve para aliviar os acusados do golpe, mas dificilmente prosperará em casos envolvendo organizações criminosas como PCC e CV.
A controvérsia escancara a dificuldade do STF em manter coerência na aplicação de garantias penais. Enquanto a Corte é vista como dura contra facções do crime organizado, o voto de Fux para os acusados da tentativa de golpe gerou a percepção de que princípios garantistas podem ser acionados seletivamente, conforme o perfil dos réus e o contexto político.